UM FESTIVAL DE CINEMA

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Todos somos criadores de alguma coisa ou de alguma maneira . É isso que eu ia pensando no avião a caminho do 22 Festival de Cinema de Vitória, atendendo ao convite para integrar um júri de curta metragem.

Nessas ocasiões, sempre estou como um objeto estranho, pois que minha paixão por escrever ficção me coloca como uma estrangeira em viagem, quando me deparo com uma dessas situações de julgar filmes pelo país afora. 

Ocorre que algumas criaturas são sucessivamente atravessadas pelo espanto de me verem atuando em outra área que não seja a literatura. O que desculpo totalmente, pois até eu mesma, às vezes, me esqueço de minha longa formação acadêmica em cinema.

Diplomas à parte, descubro que muitas pessoas têm dificuldade em aceitar que se possa ser múltiplo na vida. E eu sou. Para além de múltipla. Desdobrável, como diz Adélia Prado. É muito chata essa coisa de ter um rótulo apenas. Dublê de professora de cinema e escritora, tenho prazer em aceitar os chamados que me dão oportunidade de trabalhar com minha dupla profissão.
 
Assim é que, uma vez recebida com tanta gentileza pela equipe do Festival, me instalo no hotel, ao lado de outros jurados, cineastas, atores e atrizes vindos de todo o país.
 
Diante da paisagem magnífica, com direito à vista da Curva da Jurema e ao esplendor do Mestre Álvaro, fico tranquila e me preparo para as reuniões, debates, exibições, comentários e anotações, varando a madrugada, enquanto as luzes da cidade brilham como um colar molhado debaixo da chuva. Até que em uma bela manhã o sol se abriu e o céu azulou. E foi como se Vitória quisesse mostrar várias faces aos que vinham de outros lugares.
 
O Festival ocorreu com as pequenezas e grandezas de qualquer Festival. No entanto, o bom é só lembrar a parte boa. Que inclui a incrível coragem e competência da sua Diretora, Lúcia Caus, uma diligente guerreira, e de sua equipe eficiente, sustentando toda a complexidade do evento contra os ocasionais tormentos causados por eventuais incompreensões e insatisfações. E de quebra enfrentando com graça e elegância algumas insidiosas rasteiras, pequenezas e mesquinharias. Chatices que, aliás, costumam enodoar os Festivais de Cinema, dos mais grandiosos aos menores.
 
Julgar nunca foi fácil. Convém cultivar com coragem a intrepidez na raiz do pensamento até atingir o momento em que é preciso tomar decisões.

Para chegar ao melhor filme foi preciso que o júri esmiuçasse todas as circunstâncias, das mais técnicas às mais emotivas, passando pela contribuição ao universo cinematográfico e pelo envolvimento com as dores, amores, alegrias e comportamentos sociais.
 
Não foi tarefa tranquila, partilhada comigo pelos cineastas Rodrigo Bitti e Bertrand Lira. Nós três a dar notas a filmes vindos de todo o Brasil. Aí incluídos aqueles realizados no Espírito Santo, em condições de igualdade. Para mim, uma apaixonada pelo nosso Estado, foi particularmente espinhoso.
 
Mas um júri deve atuar sem bairrismos nem protecionismos. E cumpriu-se de maneira briosa a missão. O escolhido foi “À festa, à guerra”, de Humberto Sinoti, um filme alegórico e delicioso sobre política, carnaval, minorias e acertos de conta com a sociedade de agora. Com direito à ironia, à denúncia e à crítica dos costumes atuais no Brasil.
 
Hoje, tenho a mente apaziguada, o coração leve e a sensação de dever cumprido com a aprendizagem desses dias de júri. E agradeço a rara felicidade de ter contribuído para tornar o Festival de Cinema de Vitória respeitado e reconhecido em todo o país.

Queridas e queridos, para vocês que gostam de ler minhas crônicas, aí vai a de hoje, publicada no Caderno Dois, do jornal A Gazeta. A foto é do filme "À festa, à guerra", de Humberto Carrão Sinoti (RJ), prêmio de melhor filme de curta metragem no 22 Festival de Vitória.


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